Depoimento: A realidade e os sentimentos de quem viveu em um abrigo/casa de acolhimento

Pessoal, compartilho com vocês o depoimento da Isabela* para entendermos a realidade e os sentimentos de quem passa pelo abandono e casas de acolhimento. Querida, desejo que você seja muito feliz com a família que está construindo. Com amor e gratidão pela generosidade em compartilhar conosco a sua história. Luciane

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Meu nome é Isabela Silva*, tenho 4 irmãos. Quando éramos pequenos fomos para um abrigo.

Minha mãe trabalhava de doméstica o dia inteiro, sustentava nos cinco e pagava o aluguel da casa. Quando eu tinha 3 anos ela se separou do meu pai, porque sofria violência doméstica, tanto física e moral, e também abusava sexualmente de mim. No tempo em que minha mãe trabalhava, ficávamos na creche perto de casa, nas férias tínhamos que ficar sozinhos em casa, comendo uma pequena marmita que minha mãe deixava pronta.

Em 2000, o Conselho Tutelar recebeu a denúncia que cinco crianças passava o dia inteiro sozinhos em casa, trancados com apenas uma marmita para comer, foi por tal motivo que fomos parar no lar. Eu era tão pequena que não chorei, não senti nada, meus irmãos também não choraram, estranhamos tanta criança de várias idades num só lugar … O começo não foi tão difícil. (acho que isso depende de cada criança, algumas chegavam chorando, querendo a mãe, não comiam, etc) Passadas algumas semanas minha mãe começou a nos visitar todo domingo; No final da visita lembro de abraçar ela forte e chorar quando ela ia embora, ficava no portão até ver ela sumindo ao longe…  Foi nesse tempo que as coisas começaram a fazer sentido,“ como assim eu tenho que ficar longe da minha mãe!?”  Lembro de ver várias crianças indo embora com seus familiares ou sendo adotadas, eu ficava tão triste, queria sair de lá também.

Em 2003 finalmente minha mãe conseguiu nossa guarda, saímos do lar, foi véspera de Natal, foi uma felicidade! Minha mãe estava namorando um cara,  bem legal por sinal, cuidava bem dela, mais ele não gostava da idéia de ” ser pai” de cinco crianças, então acabou que ele foi embora e deixou minha mãe. De novo a história se repete, minha mãe trabalhando fora e nos na escola. Mais aconteceu que minha mãe teve um acidente no trabalho, minha mãe ficava em casa, cuidando da gente, saímos da escola. Ela arrumou um namorado que usava  drogas, e consequentemente ela veio a usar também.

Em março de 2004 voltamos para o lar, dessa vez chorei muito, não queria voltar para o lar, não porque era ruim, mais porque queria minha mãe.
Dessa vez não tinha visitas aos domingos, e nem abraços de mãe, ela tinha sumido completamente!
Passados cinco anos recebi a notícia que tinha um casal que queria adotar nos cinco, meus irmãos ficaram super felizes, nós iamos embora afinal!
Era um casal simpático e humilde, eram da religião Mórmon, então começou todo aquele processo, domingo eles viam ver a gente, e depois de um tempo começamos a ir na casa deles passar o final de semana. Foi muito importante esse processo, foi quando eu percebi que não queria ir morar com eles, não queria ser adotada, por vários motivos, eles queriam que chamassemos eles de mãe e pai, queriam que dedicassemos a religião deles, e por fim ela não gostava do meu jeito de se vestir, queria me obrigar a usar vestidos que a Igreja determinava. Ela queria mudar nosso jeito, nossos costumes. Então não deu certo, conversei com ela e falei.

Isso significava que eu ficaria no lar por mais tempo, mais isso já não era problema, já estava acostumada, não sentia mais falta da minha mãe, o lar virou minha casa, e as crianças e adolescentes viraram meus irmãos.
E foi passando os anos, aconteceu várias coisas, muitos foram embora, muitos chegaram e até hoje vivem lá. Quem está no lar desde criança até hoje, percebe –  se  um jeito bem reservado quando se trata de mãe e pai, já por estarmos cansados de esperar por alguém, não temos mais afeto por pai e mãe, não sentimos falta, acostumamos a ficar sem, o dia das mães e dos pais é um dia qualquer como os outros. Mais já para o lado das crianças, eles vêem as mães sociais ( nos chamamos de “tia” as mulheres que cuidam das crianças lá dentro) como verdadeiras mães, mesmo que não é de sangue, mais eles se apegam a elas, dão aquelas lembrancinhas feita nas escolas para elas, eles sim sentem essa necessidade da mãe e do pai, mais nós mais velhos, sabemos que logo esse afeto passa, quando vemos que o tempo está passando.

Hoje já tenho mais de 18 anos e não moro mais no abrigo. Já tenho minha casa que consegui através do Programa Social Minha Casa Minha Vida, tenho um bebê que eu amo mais do que tudo e vivo com meu namorado/marido. Essa é minha família que eu construí.

Junto com minha irmã mais nova encontramos nossa mãe, ela já não usava mais droga, mora em outra cidade e ainda trabalha de doméstica. Ela ficou contente por sabermos que estávamos todos bem, namora um cara que eu não gosto muito. Ela conseguiu a guarda do meu irmão caçula que está morando com ela. Falamos pouco com ela, não consigo sentir afeto por ela, respeito sim, amor não.

  • Nome fictício, o verdadeiro nome não foi informado para preservar a identidade e história.

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